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Escravidão contemporânea | Entrevista com Henrique Mandagará

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ENTREVISTA: ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL DA SUPEREXPLORAÇÃO

    A Imprensa do SindisprevRS conversou com Henrique Mandagará, auditor-Fiscal do Trabalho que participou da operação de resgate de trabalho análogo ao escravo em Bento Gonçalves, envolvendo as vinícolas gaúchas Aurora, Salton e Garibaldi. Henrique é auditor desde 2014 e também coordena o projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho do RS.

 

Que situações caracterizam o trabalho análogo ao escravo?

    Henrique: A escravidão contemporânea no Brasil se caracteriza em quatro modalidades: 1) condições degradantes de trabalho; 2) trabalho forçado; 3) jornada exaustiva e 4) servidão por dívida. São modalidades que tolhem a dignidade e/ou liberdade do trabalhador.

 

No caso de Bento Gonçalves, quais dessas condições foram observadas?

    Henrique: As investigações estão em andamento, mas temos conclusões preliminares. De antemão, tem a questão de trabalho forçado, pois os trabalhadores foram atraídos para uma oferta de trabalho digno, com boas condições de alojamento, de alimentação, o que não se confirmou. Além disso, há relatos de vigilância ostensiva. Não podiam reclamar das condições em que se encontravam, sob pena de serem agredidos. As condições degradantes estão em apuração por conta das condições de alojamento.

    Também tem a jornada exaustiva. Segundo os primeiros relatos, os trabalhadores começavam às 4h da manhã na colheita da uva e iam acabar só às 22h no descarregamento nas vinícolas. A servidão por dívida também está presente porque o mercado no qual os trabalhadores compravam mantimentos estava inserido na dinâmica do empregador. E também a questão do empréstimo com juros abusivos, pois o dono da pousada emprestava dinheiro com juros de 50% para os trabalhadores serem pagos no fim da colheita.

Em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas no Brasil, o maior número em 10 anos. Como está a fiscalização no Rio Grande do Sul?

    Henrique: No RS é ainda mais alarmante. Vimos uma média de 20 a 30 vítimas de trabalho escravo por ano (da série histórica desde 2005). Em 2021, já houve um grande salto, foram 69 vítimas. E mais que dobrou em 2022, quando foram 156 vítimas. Agora, em 2023, estamos com o numero exato de 291 vítimas no início de março.

    Agora temos o número atualizado de Uruguaiana: 82 trabalhadores resgatados na cultura do arroz. Então nossa curva está muito ascendente. As fiscalizações, nós estamos fazendo mais, sim, porque nossa demanda da sociedade cresceu.

 

A que fatores você atribui o aumento de casos?

    Henrique: Basicamente à questão da vulnerabilidade. As condições de trabalho aparentemente pioraram. O nosso perfil de resgatado aqui são trabalhadores nordestinos atraídos em regiões muito vulneráveis. A sociedade também tomou conhecimento da escravidão moderna, e está mais disposta a denunciar e não aceitar.

São recorrentes os casos de empresas terceirizadas envolvidas com violações de direitos trabalhistas. Esse tipo de contratação dificulta a responsabilização das empresas?

    Henrique: A terceirização dificulta muito a responsabilização. No trabalho escravo, especificamente, nos deparamos com um problema muito comum: vamos fiscalizar uma carvoaria em determinada localidade. Lá, você não sabe quem é o dono da carvoaria, quem contratou o pessoal, quem está vendendo, quem arrendou e quem é o dono da terra. Então, em cada caso concreto, é preciso ver quem é o responsável.

    E, sim, deliberadamente, a gente nota que isso é pensado desta forma. Alguém se propõe a ser laranja, disposto a assumir tudo, inclusive a responsabilidade penal em nome do empregador que está por traz. E as estatísticas mostram que acidentes de trabalho e precarização geralmente estão acompanhados da terceirização.

Qual a responsabilidade da empresa terceirizada e da contratante?

    Henrique: No estabelecimento ou no local previamente convencionado em contrato, a responsabilidade de saúde e segurança do trabalho é das duas, tanto da contratante quanto da tomadora. O que a gente nota no dia-a-dia da fiscalização é que algumas empresas (para não generalizar) entenderam que a possibilidade de terceirização irrestrita seria uma forma de se livrar de toda e qualquer responsabilidade. Então terceirizam, esquecem e não buscam saber como está sendo feito. Mas, sim, a lei prevê a responsabilização das duas.

Como o Ministério do Trabalho lida com a falta de pessoal?

    Henrique: Temos falta tanto de auditores fiscais do trabalho quanto de servidores administrativos do Ministério do Trabalho. No brasil todo, são 1952 auditores fiscais do trabalho. E no RS, 132. Parte está envolvida em atividades de chefia, parte analisando multas. Tem todas as outras atribuições de inspeção do trabalho, como inserir pessoas com deficiência no mercado de trabalho, fiscalizar cotas de aprendizagem, fiscalizar recolhimento do FGTS, trabalho infantil, saúde e segurança do trabalho.

    O último concurso de auditor foi em 2013, vai fazer 10 anos, com 100 vagas, então entrou pouca gente e nesse meio tempo muitos se aposentaram. É sintomático, mas eu acumulo a função de chefe de fiscalização de saúde e segurança do trabalho. E vejo que a falta de estrutura administrativa complica nosso trabalho, porque dependemos dela para fazer uma boa fiscalização. Gestão de veículos, diárias, até equipamentos (em que entra a questão de recursos também).

 

O Governo Lula planeja reestruturar a política de combate ao trabalho análogo ao escravo no Brasil. Do ponto de vista do Ministério do Trabalho, que medidas são urgentes?

    Henrique: Urgente é a contratação de auditores fiscais do trabalho e a reestruturação administrativa e de pessoal administrativo, e também estruturação de recurso para melhoria das condições de trabalho. Veículos, equipamentos que precisam ser atualizados, uma gama de coisas. Até nosso RH foi desmontado aqui, então para um servidor resolver um problema toma muitas horas de trabalho porque não tem uma pessoa com quem a gente consiga resolver rapidamente.

 

Os servidores administrativos do Ministério do Trabalho enfrentam a desvalorização enquanto categoria. Como demonstrar para a sociedade a importância desses trabalhadores, inclusive para viabilizar a fiscalização? Um trabalho influencia no outro?

    Henrique: Com certeza o trabalho do servidor administrativo e do auditor fiscal são dependentes. E o cidadão depende muito dessa estrutura. Na sessão de saúde e segurança do trabalho, às vezes não há muito o que fazer a não ser ouvi-lo. Estar presente no local de trabalho e consciente do nosso sentido de servidor público.

    Na fiscalização do trabalho escravo, tenho muito que agradecer aos servidores do seguro desemprego na superintendência, que são solícitos e facilitam muito para o resgatado receber seu direito de forma mais célere.

    Todos nós, independentemente da função, somos servidores públicos. O resgate em Bento trouxe à tona a importância desses profissionais. Lá, todos eram servidores, viraram noites, madrugadas. Todo mundo muito apaixonado pelo que faz. Atender bem a população é a melhor propaganda que a gente pode fazer.

 

A precarização do trabalho dos servidores públicos passa por um projeto de rebaixar as condições de trabalho da população brasileira como um todo.

    Henrique: Eu me questiono, se essa ação de Bento ocorresse dois anos atras, se a recepção da sociedade seria a mesma. Tem um episódio que envolve o SindisprevRS. Logo que o Ministério do Trabalho foi extinto, fizemos uma manifestação em frente à superintendência, contra a extinção. Durante, passou um motorista de Uber e nos xingou: “vai trabalhar”. Dá uma tristeza, pois o trabalhador do Uber precisa do ministério do trabalho. Então foi desanimador. Poxa, é por ti que estou lutando e tu está me xingando. Acho que isso está mudando e tenho fé que vai mudar. Passamos um período em que foi muito questionada a importância do Ministério do Trabalho e talvez precisou desse período para as pessoas entenderem que ele é importante.

 

A mobilização é um caminho para as conquistas?

    Henrique: Eu acredito muito nos sindicatos. A gente trata todas as denúncias, mas o sindicato representa um conjunto de trabalhadores, então tem muitas portas abertas. Assim como outras organizações da sociedade civil, quando eles demandam, é porque a sociedade está demandando. Nossa voz como servidores é através dos sindicatos.

Antes de chegar ao cúmulo que é o trabalho análogo à escravidão, que outras violações precisam ser combatidas?

    Henrique: É uma discussão filosófica. Por um lado, tratamos de condições de segurança e saúde do trabalho, que não são excludentes. Por outro lado, aquele trabalhador que está se expondo ao risco (por exemplo pendurado instalando ar condicionado, em uma obra, construção civil, mexendo com eletricidade), se o salário dele estiver atrasado há dois dias, aquela situação que já é perigosa é agravada. Porque a cabeça dele já está cheia, ele ainda tem que pensar nas contas que estão atrasadas…

    Então as condições de jornada, férias, descanso, salário são tão importantes quanto saúde e segurança. Há uma gama de obrigações que faz com que o bem estar do trabalhador ocorra e há muita coisa que acontece antes desta violação gravíssima que é o trabalho análogo ao escravo. O ponto de partida para a dignidade é a carteira de trabalho assinada, o registro do trabalhador, que abre portas para ele ser visto pelo Estado brasileiro.

VOCÊ SABIA?

  • O Art. 243 da Constituição Federal prevê a expropriação das propriedades onde for localizado trabalho escravo. Essas propriedades seriam destinadas à reforma agrária ou programas de habitação popular. Infelizmente, não há regulamentação e esta medida nunca ocorreu.

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