Por Nadine Gasman/Especial para o UOL
No início de março de 2015, a tipificação do feminicídio como crime hediondo no Código Penal tornou-se lei no Brasil após a presidente Dilma Rousseff sancionar o projeto proposto pelo Legislativo. O compromisso político de tolerância zero à violência de gênero, firmado pela presidente no Dia Internacional da Mulher, é uma demonstração do fortalecimento das políticas para as mulheres.
Esse instrumento legal recém-conquistado se agrega à Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, adotada, em 1993, pela Assembleia Geral das Nações Unidas; à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que completa 20 anos em 2015; e à resolução da 57ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) das Nações Unidas, sobre a preocupação com mortes de mulheres e meninas com motivação de gênero.
O feminicídio é um problema global, sendo nomeado como tal na América Latina e Caribe. É crime praticado com requintes de crueldade e terror pela carga de ódio, na sua grande maioria, deflagrados quando as mulheres decidem dar um basta numa relação afetiva. Elas são interpeladas do direito de decidir sobre as suas vidas, com quem vão se relacionar e a maneira como a relação afetiva vai terminar.
Na América Latina, desde 2007, 15 países aprovaram leis que tipificam o feminicídio: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela.
De acordo com o Mapa da Violência 2012, produzido pelo Centro Brasileiro de Estudos Latinoamericanos, o Brasil ocupa a 7ª posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking com 84 países.
Entre 1980 e 2010 foram assassinadas mais de 92 mil mulheres no Brasil, 43,7 mil somente na última década. Ou seja, a cada duas horas, uma brasileira foi morta sob condições violentas, em sua maioria no ambiente doméstico. Conforme esse estudo, o número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, o que representa um aumento de 230%.
Em seguimento à tipificação do feminicídio no Código Penal, é necessário falar sobre ele e nomeá-lo como tal. É preciso torná-lo visível e presente na opinião pública, nas universidades, nas delegacias, nas perícias, nas promotorias, nas defensorias públicas e nos tribunais de justiça.
Não é possível que a morte violenta das mulheres seja vista como algo natural ou inexistente. É preciso considerar a violência e o feminicídio como eventos atípicos, como expressões de práticas cruéis a serem coibidas com toda a força da lei.
Reparação
O Brasil foi escolhido pela ONU Mulheres e pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos como país piloto no processo de adaptação do Modelo de Protocolo Latinoamericano para Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero.
A seleção está baseada nos índices e na crueldade de mortes violentas de mulheres, na capacidade de execução do sistema de justiça, nas parcerias existentes entre os órgãos públicos e na capacidade técnica dos escritórios da ONU Mulheres.
No Brasil, o projeto se realiza em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, e com o apoio da embaixada da Áustria, da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público e do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais.
Profissionais de segurança pública e de justiça, de diferentes regiões do país, estão colaborando no debate técnico para garantir a diversidade de boas práticas dessas áreas e as realidades distintas sobre as situações de violência de gênero.
O protocolo latinoamericano reúne esforços para que as investigações e processos penais integrem fatores individuais, institucionais e estruturais como elementos para entender o crime e, em seguida, responder adequadamente às mortes violentas de mulheres pelo fato de serem mulheres.
Consideramos que, se bem registradas as informações sobre as vítimas nos boletins de ocorrência, laudos dos IML e inquéritos policiais, a justiça terá mais condições de adotar sentenças severas. Contudo, o sistema de justiça precisa considerar, no bojo dos seus processos e fluxos de trabalho, a perspectiva de gênero.
Isso implica fazer justiça às sobreviventes e às vítimas fatais do feminicídio. Significa perceber a crueldade com que as suas vidas foram atingidas e as sequelas físicas e sociais dessa violência, isto é, na vida das mulheres, das pessoas que convivem com elas e para a sociedade brasileira como um todo.
A reparação às vítimas significa vencer a falta de vontade, o desinteresse e a cumplicidade que fazem com que esses crimes fiquem impunes e sem repressão da justiça e da sociedade.
Para a ONU Mulheres, o reconhecimento institucional e social do feminicídio, o fim da impunidade e a visibilidade pública dos assassinatos violentos de mulheres por razões de gênero são caminhos que não podemos mais deixar de percorrer.
É crucial que seja feita reparação às vítimas e seja fortalecida a mensagem de que essas condutas não são toleradas pela sociedade, a fim de prevenir o avanço do feminicídio no Brasil.