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“Para construir a transformação, eu preciso saber exatamente onde estão as rupturas da minha cultura” | ENTREVISTA COM PINGO BOREL E SANDRA SOARES

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    Manter viva a cultura afro-brasileira honrando a ancestralidade. Contribuir com o a formação e consciência das novas gerações. Estes são alguns dos objetivos do “Centro Cultural Mestre Borel”, criado no município de Viamão para preservar a memória do Mestre Griot Borel do Xangô – Walter Calixto Ferreira.

    O espaço é um memorial de conservação de itens históricos e também busca apoiar comunidades com ações de solidariedade, oficinas de música, ensino sobre Artes, Cultura e Assistência Social.

    Walter Mello Ferreira, filho do Mestre e mais conhecido como Pingo Borel, é fundador do Centro Cultural, educador social, músico instrumentista e membro do grupo Alabê Ôni. Sandra Soares é integrante do Centro Cultural, mestre em Serviço Social e assistente social na rede municipal de Viamão. O casal e sua filha estiveram presentes no XVII Congresso Estadual do SindisprevRS, em que Pingo realizou uma valorosa apresentação.

    Confira a seguir o bate-papo da Secretaria de Imprensa com os convidados Pingo e Sandra.

Pingo, o que tu buscou transmitir com a apresentação “No entorno do Tambor”? O que sentiu que precisava dizer naquele momento?

Pingo Borel: Eu acho que eu quis passar o que eu tento passar sempre que falo. Para tu entender… a minha bisa era escravizada e foi uma das primeiras negras que teve terreiro de religião de matriz africana no estado.

    Uma vez eu fui fazer uma fala em Rio Grande e, quando terminei, a esposa do rapaz que tinha me convidado estava chorando. Eu fui buscar saber se tinha falado alguma coisa que machucou ela e descobri que ela chorou porque a família dela, a ancestralidade dela, era quem tinha escravizado a minha bisavó. É justamente por isso que eu preciso conhecer a história. Não negar a história, conhecer a história.

    Compreender que cada ser é um ser. Mesmo que tu venha de uma massa sólida má, não é? Às vezes tu um lugar muito, muito contaminado, mas existe um ser ali que é puro. Essa é a prova de que nós somos indivíduos únicos. Essa pessoa não precisa reproduzir. Ela precisa se transformar. E para construir a transformação, eu preciso saber exatamente onde estão as rupturas da minha cultura. Eu preciso de fato saber onde é que o meu vaso está trincado.


Agradecimentos de Walter Calixto Borél no livro “Agô-iê, vamos falar de Orishás”. A bisavó de Pingo, Magalí-Yala, foi uma nigeriana que viveu como escravizada doméstica em Santa Vitória do Palmar (RS). Seu nome, que em Iorubá significa “dia festivo”, foi modificado para Domingas Calixto por seus senhores, integrantes da família Mirapalheta Calixto. Foi com Domingas que Mestre Borel aprendeu o Iorubá. Fonte: https://projetobercodobatuquers.wordpress.com/ Foto: Náthaly Weber.

Existe responsabilidade da branquitude frente ao racismo?

Pingo Borel: Claro, porque se não, a igualdade que eles dizem que buscam não será alcançada. Podem fazer determinadas coisas só pensando em um retorno, e isso não é o processo. Claro que a gente sabe que existe todo um sistema que trabalha para que isso não aconteça.

    Uma coisa é o que os nossos antepassados fizeram, que refletem até hoje nas nossas vidas. Uma criança branca vai ter privilégios, isso é uma coisa, mas ela precisa ter consciência. E como é que nós vamos mudar? Quando dermos as mãos e lutarmos juntos.

Sandra Soares: A gente quer evitar o discurso de ódio. Sim, a gente sabe que existem privilégios. Mas vamos dialogar sobre isso. Tu aceita o privilégio. Por quê? Ou tu luta por igualdade? É essa questão, fazer a população que não é negra, pensar. A população que não é indígena, que não é cigana… Qual teu discurso e qual tua prática? Falar é bonito, mas o principal é o que não está nos holofotes, mas na tua vida, no miúdo do cotidiano.

A educação é ferramenta para aprender sobre respeito e diversidade?

Pingo Borel: O nosso povo é muito machucado. Então quando ele toma consciência, ele tem uma parede erguida. Só que tem um detalhe, a criança é um HD vazio e quem enche esse HD somos nós. Uma vez em uma aula sobre a consciência negra, a professora que me convidou iniciou apresentando imagens de livros de história sobre a África e falando todas as coisas que a gente já sabe. Negros no tronco, escravidão, miséria. Quando chegou a minha vez, eu perguntei se tinha um mapa. Peguei esse mapa e comecei a mostrar e contar: na Nigéria existe uma cultura assim, assado, as vestimentas são assim, assado. Falei de coisas boas de cada lugar em que havia sido mostrado só o lado ruim.

 

E sobre a segregação do povo negro nas periferias?

Pingo Borel: A pequena massa dominante entendeu que se garantir estrutura para o povo da periferia eles vão começar a ter acesso a lugares que eles não têm. A partir disso vem o conhecimento e aí vai começar a ter um processo de não-dominação, um processo de coletividade. Para a menor massa dominante (eles são poucos, só que sabem articular), a coletividade não é boa. Porque daí diminui as regalias. Eles vão ter que entender que de fato não precisam de milhões pra viver, que não precisam de vale paletó, entender que não precisam de um monte de coisa, não é?

Seria muito melhor o fim dos superprivilégios e que todos tivessem acesso ao mínimo, ao básico, ao digno.

Pingo Borel: O processo que se diz evolutivo, se tu olhar bem, acabou deixando as pessoas mais individualista. Acabou fazendo com que eu olhasse mais para as coisas que me favorecem e não olhasse pro próximo.

Retomar a coletividade é um dos objetivos do movimento negro?

Pingo Borel: Sim. E é parte fundamental da cultura negra. Eu falo da nossa cultura porque isso é muito latente no nosso processo. Tanto é que nas festas e cultos, toda a comida que é feita é distribuída em comunidade. Essa é a base.

Isso também se relaciona com o preconceito religioso, os cultos de matriz africana são muito criminalizados e demonizados pelo povo branco.

Pingo Borel: Esse é o processo da dominação. A classe dominadora, quando invadiu o Brasil – porque o Brasil não foi descoberto, ele e seu povo sempre estiveram aqui – quando ele foi invadido e trouxeram a etnia negra, trouxeram um continente inteiro. Então eles buscam deixar essa consciência coletiva fechada e abafada, porque se ela desperta, a classe dominadora não tem chance.

Nos nossos espaços, quais caminhos seguir para sermos antirracistas?

Sandra Soares: Todos os dias a gente precisa se questionar. Quem nós somos aqui? Por que que a gente está nesse mundo? Por que estamos tendo essa conversa? Não é para estar em destaque nos lugares, é pra ser. Isso se confunde às vezes. A gente também não quer só estar em espaços culturais, a gente quer estar falando, quer estar na mesa porque têm esse direito. Trazer o usuário também. As lideranças comunitárias, os intelectuais – têm várias pessoas produzindo conhecimento na comunidade. Eu quero PHD da comunidade, porque aí é o saber popular.

Eu não me sinto tão bem quando vou em um lugar e não vejo negros. Eu fico procurando os negros e vendo em que os espaços profissionais eles estão. Se é o porteiro, se é que está limpando o banheiro. Isso me toca. Que espaços a gente ocupa, pelo que a gente é lembrado.

A gente viveu um momento de pandemia, ficou muito tempo sem se encontrar. Esse espaço é importante pra isso. Desabafar o que a gente viu no cotidiano. Porque senão a gente não consegue, fica endurecido. Precisamos criar uma política estratégica e se fortalecer pra voltar ao posto de saúde, ao hospital e ter esperança de continuar a lutar.


Homenagem ao Mestre Borel da Escola Copacabana no desfile de carnaval no Sambódromo Porto Seco de Porto Alegre em maio de 2022.

 

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