O texto da reforma da previdência, entregue para apreciação da Câmara dos Deputados, merece uma avaliação cuidadosa para que possamos ler mais claramente nas entrelinhas o seu real objetivo: a retirada de mais direitos dos trabalhadores. Com o objetivo de esclarecer determinados pontos da proposta do governo, o SindisprevRS solicitou à Paese, Ferreira e Advogados Associados, que presta assessoria jurídica ao sindicato, um parecer preliminar sobre a PEC 06/2019.
O SindisprevRS está acompanhando os desdobramentos do tema, que será objeto de um estudo mais aprofundado. Seguiremos atualizando as informações sobre essa questão de extrema relevância, que afeta o nosso futuro e o das próximas gerações.
Leia abaixo, na íntegra, o parecer do advogado Tiago Gornicki Schneider, da Paese, Ferreira e Advogados Associados sobre a contrarreforma da previdência.
I. PARECER A RESPEITO DA PEC 06/2019: A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA
Consulta-nos o SINDISPREV/RS a respeito da nova proposta governamental de contrarreforma da previdência, PEC 06/2019. Cumpre destacar que se trata o presente de parecer preliminar, elaborado de forma rápida para subsidiar o primeiro enfrentamento à questão; o estudo aprofundado da proposta certamente revelará problemas que, talvez numa primeira leitura, não sejam tão evidentes.
II. LINHAS GERAIS DA PROPOSTA
De início, imprescindível frisar algumas linhas gerais da proposta ora formulada:
(i) Retirada da regulamentação previdenciária da Constituição Federal: na verdade, claramente a pretensão é positivar exclusivamente regras prejudiciais aos trabalhadores, remetendo à legislação complementar boa parte da regulamentação necessária ao efetivo implemento dos benefícios (tais como rol de beneficiários, forma de cálculo, reajustamento, regras para cumulação, entre outras). Considerando que desde a Carta Magna temos tido contrarreformas previdenciárias sempre no intuito de retirar direitos, resta claro que essa é uma forma de facilitar futuras alterações ainda mais prejudiciais, tendo em conta que o quórum necessário à aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição é superior ao de uma lei complementar;
(ii) Privatização do fundo previdenciário: não será apenas a previdência complementar (ou seja, para os servidores públicos federais que ingressaram após a instituição do FUNPRESP, o valor que excede o teto do RGPS) que será submetida ao risco de mercado; caso tenha prejuízo o fundo de capitalização, todo o benefício do trabalhador estará sob risco. Há uma mudança estrutural na previdência: ao invés de pública e solidária, será privatizada e de risco. Embora afirme que tal se dará de forma “alternativa”, a PEC estabelece que “instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A”. Inclusive os fundos de previdência complementar (que hoje devem necessariamente ser instituídos pelo ente administrativo) poderão ser privados;
(iii) Transferência integral do ônus contributivo ao trabalhador, isentando os empregadores de contribuir para a formação do fundo previdenciário: de fato, é aberto caminho para
que os empregadores (inclusive os entes federativos em relação aos servidores) sejam isentados de contribuições previdenciárias. A remete à legislação a regulamentação do sistema, estabelecendo como mera diretriz a “possibilidade de contribuições patronais e do trabalhador, dos entes federativos e do servidor, vedada a transferência de recursos públicos”. Isso significa que, na prática, uma lei complementar pode muito bem estabelecer que contribuições patronais e dos entes federativos serão facultativas, colocando sob os ombros da classe trabalhadora toda a responsabilidade de poupar para a aposentadoria e todos os riscos próprios do mercado financeiro;
(iv) Majoração do tempo necessário à obtenção dos benefícios, com redução dos valores: sob fórmulas das mais diversas, que não explicitam qual será o tempo necessário para aquisição dos benefícios, o fato é que a proposta majora o tempo necessário para o trabalhador se aposentar, reduz o valor dos benefícios (por exemplo, determinando a utilização de todas as contribuições vertidas ao sistema para a obtenção da média, o que praticamente inviabiliza que alguém consiga se aposentar pelo teto) e estabelece regras que permitem majorar ainda mais o tempo de contribuição sem que sequer seja aprovada nova legislação;
(v) Ataque maior às mulheres: mesmo que preserve parte do direito à obtenção dos benefícios, no momento do cálculo do montante a ser pago há a equalização absoluta entre mulheres e homens, exigindo 40 (quarenta) anos de contribuição para o pagamento integral do benefício. Ou seja, as mulheres até poderão se aposentar antes, mas receberão menos;
(vi) Ataque aos mais vulneráveis: ao final da proposta, está explicitado o montante que o Governo calcula economizar com a reforma, sendo R$ 715 bilhões no RGPS, R$ 173,5 bilhões no RPPS da União e R$ 182,2 bilhões na “Assistência Fásica e Focalização do abono salarial”.
III. AS REGRAS DE TRANSIÇÃO PARA OS SERVIDORES PÚBLICOS
III.1. A AQUISIÇÃO DO DIREITO À APOSENTADORIA
O artigo terceiro da emenda dispõe sobre as aposentadorias dos servidores que ingressaram até sua promulgação, estabelecendo a necessidade de preenchimento dos seguintes requisitos: I – cinquenta e seis anos de idade, se mulher, e sessenta e um anos de idade, se homem; II – trinta anos de contribuição, se mulher, e trinta e cinco anos de contribuição, se homem; III – vinte anos de efetivo exercício no serviço público; IV – cinco anos no cargo efetivo em que se der a aposentadoria; e V – somatório da idade e do tempo de contribuição, incluídas as frações, equivalente a oitenta e seis pontos, se mulher, e noventa e seis pontos, se homem, observado o disposto nos § 2º a § 4º. Já no parágrafo primeiro, é elevada a idade mínima a partir de primeiro de janeiro de 2022, para cinquenta e sete anos de idade, se mulher, e sessenta e dois anos de idade, se homem.
O somatório entre idade e contribuição, previsto no inciso V, será majorado a partir de 1º de janeiro de 2020, em um ponto para cada ano, até atingir o limite de cem pontos, se mulher, e de cento e cinco pontos, se homem. Ou seja, de início, verifica-se a penalização das mulheres, com uma majoração da soma idade/contribuição por mais catorze anos, reduzindo a diferença hoje existente entre homens e mulheres.
Tais requisitos são aplicáveis a todos os servidores que ingressaram no serviço público até a publicação da emenda, independente da data de ingresso.
III.2. FORMA DE CÁLCULO DO BENEFÍCIO INICIAL: SERVIDORES QUE INGRESSARAM ATÉ DEZEMBRO DE 2003
No inciso I do parágrafo sétimo do art. 3º, está estabelecida a forma de cálculo do benefício de aposentadoria: para quem ingressou até 31 de dezembro de 2003, a totalidade da remuneração (na forma do §10 do mesmo artigo), desde “que se aposente aos sessenta e dois anos de idade, se mulher, e aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, ou aos sessenta anos de idade, se titulares do cargo de professor de que trata o § 5º, para ambos os sexos”. Ou seja, além dos requisitos previstos no caput do artigo, os servidores deverão preencher o requisito mínimo de idade aqui previsto.
Aqui já se verifica uma diferença brutal em relação aos critérios até então vigentes quanto aos requisitos de idade e tempo de contribuição (desconsiderando as demais variáveis, tais como tempo de carreira e de serviço público):
(i) Pelo art. 3º da EC 47/2005, os servidores que ingressaram até 16-12-1998 poderiam se aposentar observando a regra 85-95/mulheres-homens: o acréscimo de tempo de contribuição reduzia a necessidade de tempo de serviço;
(ii) Pelo art. 6º da EC 41/2003, os servidores que ingressaram até 31-12-2003 poderiam se aposentar com 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher, e 60 de idade e 35 de contribuição, se homem;
(iii) Agora, além de serem cumulativos os requisitos, há a idade mínima que 65 anos para homens e 62 para mulheres.
Ou seja, acaba a vantagem do servidor que começou a trabalhar mais cedo e, portanto, possui mais tempo de contribuição, já que deverá permanecer trabalhando até completar a idade mínima.
Preenchidos os requisitos, a aposentadoria se dará com base na remuneração do cargo estabelecido na forma do §10: “Considera-se remuneração do servidor público no cargo efetivo, para fins de cálculo dos proventos de aposentadoria que tenham fundamento no disposto no inciso I do § 7º, o valor constituído pelo subsídio, pelo vencimento e pelas vantagens pecuniárias permanentes do cargo, estabelecidos em lei de cada ente federativo, acrescidos dos adicionais de caráter individual e das vantagens pessoais permanentes, e observará os seguintes critérios”. Basicamente, é a última remuneração, com algumas peculiaridades.
III.2.1. A questão da mudança de carga horária.
O inciso primeiro do §10º do art. 3º estabelece: “se o cargo estiver sujeito a variações na carga horária, o valor das rubricas que refletem essa variação integrarão o cálculo do valor da remuneração do servidor público no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria e considerará a média aritmética simples dessa carga horária nos dez anos anteriores à concessão do benefício”.
Se houver variação da carga horária (por exemplo, de 30h semanais para 40h semanais), a incorporação será pela média dos últimos dez anos.
III.2.2. A questão das gratificações de desempenho.
O inciso segundo do §10º do art. 3º estabelece: “se as vantagens pecuniárias permanentes forem variáveis, por estarem vinculadas a indicadores de desempenho, produtividade ou situação similar, o valor dessas vantagens integrará o cálculo da remuneração do servidor público no cargo efetivo, estabelecido pela média aritmética simples do indicador nos dez anos anteriores à concessão do benefício de aposentadoria, que será aplicada sobre o valor atual de referência das vantagens pecuniárias permanentes variáveis”.
As gratificações de desempenho (GDPST, GDASS, GDAPMP, etc) são hoje incorporadas pela média dos últimos cinco anos; agora, serão dos últimos dez anos. No Ministério da Saúde, por exemplo, isso significa considerar período em que ainda não estava regulamentada a GDPST e, portanto, a média pode vir a ser afetada a ponto de o servidor não incorporar 100% da pontuação.
III.2.3. A questão da incorporação das parcelas temporárias.
O inciso terceiro do §10º do art. 3º estabelece: “se as vantagens pessoais permanentes ou os adicionais de caráter individual forem originados de incorporação à remuneração de parcelas temporárias ou exercício de cargo em comissão ou função de confiança, prevista em lei do ente federativo, o valor dessas vantagens que integrará o cálculo do valor da remuneração do servidor público no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria respeitará a proporção de um trinta avos a cada ano completo de recebimento e contribuição, contínuo ou intercalado”.
III.3. FORMA DE CÁLCULO DO BENEFÍCIO INICIAL: SERVIDORES QUE INGRESSARAM APÓS DEZEMBRO DE 2003 E ATÉ A INSTITUIÇÃO DO FUNPRESP
No mesmo parágrafo sétimo do art. 3º, está estabelecida, no inciso II, a forma de cálculo do benefício de aposentadoria para quem ingressou após 31 de dezembro de 2003: “a sessenta por cento da média aritmética simples das remunerações e dos salários de contribuição correspondentes a cem por cento de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde a competência do início da contribuição, se posterior àquela competência, acrescidos de dois por cento para cada ano de contribuição que exceder a vinte anos de contribuição”. As mesmas regras podem ser aproveitadas por servidores que tenham ingressado antes de dezembro de 2003 e não queiram aguardar a idade mínima prevista para o cálculo do benefício na forma do inciso I do parágrafo sétimo do art. 3º.
Mais uma vez, grandes diferenças entre o que estava vigente até então.
III.3.1. Critério de apuração da média remuneratória.
Hoje, a Lei nº 10.887/2004 dispõe que “No cálculo dos proventos de aposentadoria dos servidores titulares de cargo efetivo de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, previsto no § 3o do art. 40 da Constituição Federal e no art. 2o da Emenda Constitucional no 41, de 19 de dezembro de 2003, será considerada a média aritmética simples das maiores remunerações, utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência a que esteve vinculado, correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde a do início da contribuição, se posterior àquela competência”.
Pela proposta, não serão mais as 80% maiores contribuições que comporão a média, e sim 100% das contribuições. Na prática, isso reduz o valor do benefício: o descarte das 20% piores contribuições servia para majorar a média total.
III.3.2. Percentual da média remuneratória recebido.
A pretensão da reforma é que apenas parte da média remuneratória seja paga: 60% acrescido de 2% para cada ano de contribuição que exceder a vinte anos, sem qualquer diferença entre os sexos. Na prática, para ambos os sexos, serão necessários 40 (quarenta) anos de contribuição para receber toda a média apurada. A título exemplificativo, hoje em dia, uma servidora (ingressante pós-2003 e antes do FUNPRESP) aposenta-se, voluntariamente e desconsiderando outros requisitos que não sejam idade e tempo de contribuição, cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, recebendo 100% da média remuneratória. Com a proposta de reforma, essa servidora precisa contribuir um ano a mais (para atingir a soma de 86 pontos de idade mais contribuição) e, ainda assim, receberá apenas 82% da média remuneratória rebaixada.
III.3.3. Conclusão.
Assim, para os servidores que ingressaram após dezembro de 2003 e antes do FUNPRESP, a reforma prevê prejuízos evidentes: (i) pela redução da média remuneratória por conta da consideração de todas as contribuições; (ii) pelo pagamento de um percentual dessa média se não forem atingidos 40 (quarenta) anos de contribuição; (iii) as mulheres são igualadas, quanto ao percentual da média, aos homens.
III.4. A QUESTÃO DO REAJUSTE DAS APOSENTADORIAS CONCEDIDAS NA FORMA DO §7º DO ARTIGO 3º
O parágrafo oitavo do artigo terceiro estabelece o critério de reajuste: (i) para os servidores que cumprirem os requisitos do inciso I do §7º do art. 3º (item III.2 acima), há o direito à paridade remuneratória com os servidores da ativa; (ii) para os servidores que cumprirem os requisitos do inciso II do §7º do art. 3º (item III.3 acima), será aplicado o mesmo índice de reajuste do RGPS.
III.5. A QUESTÃO DA APOSENTADORIA DOS SERVIDORES QUE INGRESSARAM APÓS O FUNPRESP OU QUE ADERIRAM A ELE
Em relação aos servidores que ingressaram quando já vigente o FUNPRESP ou que a ele aderiram, além de o benefício ser reajustado também na forma do RGPS, a reforma estabelece que os proventos: “corresponderão a sessenta por cento da média aritmética simples das remunerações e dos salários de contribuição correspondentes a cem por cento de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde a competência do início da contribuição, se posterior àquela competência, acrescidos de dois por cento para cada ano de contribuição que exceder a vinte anos de contribuição, até o limite de cem por cento, observado, para o resultado da média aritmética, o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.
Tal como esclarecido no item III.3.2 acima, apenas com 40 (quarenta) anos de contribuição o servidor conseguirá se aposentar com 100% da média; caso saia com menos tempo, sem qualquer diferenciação entre homens e mulheres, receberá apenas um percentual da média. Da mesma forma que esclarecido no item III.3.1 acima, não são descartadas as 20% piores contribuições. Isso significa que, na prática, se o servidor tiver ao menos uma contribuição que não seja pelo teto do RGPS, sua aposentadoria será inferior ao teto.
III.6. A QUESTÃO DO DIREITO ADQUIRIDO
Importante, inicialmente, estabelecer que tem sido admitido como direito adquirido, em se tratando de aposentadoria, o efetivo cumprimento de todos os requisitos para usufruto de determinado benefício. Ou seja, se há diversos requisitos, TODOS devem ser INTEGRALMENTE satisfeitos para se considerar adquirido determinado direito; se faltar quinze dias ou dois anos não faz diferença, o requisito não foi cumprido.
O artigo nono da emenda constitucional garante a concessão dos benefícios, a qualquer tempo, cujos requisitos já foram cumpridos, inclusive quanto ao critério de cálculo inicial e os reajustes (§1º do art. 9º) e estabelecendo abono de permanência para quem permanecer em atividade (§3º do art. 9º – frisando que nem todos os critérios de aposentadoria estão aqui abrangidos).
Há, porém, um aspecto a ser observado: a possibilidade de lei estabelecer critérios para o pagamento do abono de permanência (§4º do art. 9º).
III.7. A QUESTÃO DO ABONO DE PERMANÊNCIA
A PEC garante o pagamento de abono de permanência para os servidores que preencherem os requisitos de aposentadoria previstos nas regras de transição para os servidores públicos. Há, porém, um aspecto a ser observado: a possibilidade de lei estabelecer critérios para o pagamento do abono de permanência.
IV. POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA E AMPLIAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DOS APOSENTADOS E PENSIONISTAS
O art. 13 da PEC preve a possibilidade de uma contribuição extraordinária para ativos, inativos e pensionistas; ou seja, além do que já contribuem para o PSS (cabendo sinalar que há previsão de aumento da alíquota da contribuição ordinária), poderá ser estabelecida uma nova contribuição.
Além disso, os servidores inativos e os pensionistas somente pagame contribuição, hoje, para o que excede o teto do RGPS; por essa regra, será possível elastecer a base de incidência da contribuição para todos os valores que superem um salário mínimo. A título exemplificativo, um servidor inativo que receba três mil reais mensais não paga nada de contribuição; com essa regra, poderá ser obrigado a pagar.
V. CONCLUSÃO
Reitera-se: essa é uma análise meramente preliminar, cabendo ser devidamente aprofundada a proposta de emenda constitucional nº 06/2019.
É o parecer.
TIAGO GORNICKI SCHNEIDER,
OAB/RS 68.833